sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Resumo

A partir das modernas concepções pedagógicas, procura-se definir o sujeito e seu papel na construção do conhecimento. Nossos hábitos e costumes são impostos pelo ambiente sociocultural, e nossa capacidade de escolha é limitada. A psicologia aplicada às massas pelo viés religioso induz à servidão voluntária. A concepção de mundo, em todos os aspectos, é um direito inalienável do sujeito. O coletivo se impõe ao indivíduo e o torna passivo e submisso às regras sociais. A educação para a vida autônoma passa pela reavaliação dos conhecimentos adquiridos prematuramente, na infância, e não examinados de modo crítico, na vida adulta. A prerrogativa do pátrio poder confere aos pais legitimidade na escolha da religião para os filhos? Ou esta escolha deve ser puramente subjetiva? 

Durkheim e Chauí são autores que contribuem com premissas teóricas de organização da sociedade, facultando sua articulação com minha crítica aos princípios religiosos que imprimem submissão, padronização ou homogeneização dos sujeitos. Montaigne revela a importância da educação infantil, como pressuposto para constituição do sujeito. Hume, Freud e Nietzsche realizam críticas à presença do pensamento religioso na formação humana. 

Freud afirma que a formação religiosa avilta a inteligência brilhante da criança e a transforma em pessoa intelectualmente atrofiada, na vida adulta. Por que algumas pessoas acreditam em milagres, no poder da oração e na revelação divina e outras aceitam a mediunidade e a reencarnação, mas, em ambos os casos, não admitem examinar com rigor e desassombro a legitimidade de suas crenças. A intensa atuação das igrejas cristãs no campo da assistência social torna imperceptível, ou melhor, oculta a fragilidade do arcabouço teológico que sustenta a doutrina, facilitando a conquista de novos fiéis (ver Conclusão). 

As hipóteses sobre o envolvimento dos educandos de Pedagogia com as práticas religiosas e crenças do senso comum foram confirmadas. A posição do educador diante dos modelos consagrados pela cultura. O estranhamento como instrumento de reflexão e sintonia com a realidade. O educador acrítico não concilia teoria e prática no processo pedagógico, porquanto não existem nele condições ideais e inerentes à práxis educativa. Como a assunção de um perfil crítico pode proporcionar aos profissionais de educação papel relevante na constituição de sujeitos. Religião e Educação. Educação Libertadora. Encontro de Casais com Cristo. Education and Religion.
SUMÁRIO   

Introdução


O homem medíocre é uma sombra projetada pela sociedade; é, por essência, imitativo, e está perfeitamente adaptado para viver em rebanho, refletindo rotinas, preconceitos e dogmatismos reconhecidamente úteis para a domesticidade." (...) "O medíocre nada inventa, nada cria, não impulsiona, não rompe, não engendra; mas, em compensação, sabe custodiar zelosamente a armação dos automatismos, dos preconceitos e dogmas acumulados durante séculos, defendendo esse capital comum contra o assalto dos inadaptáveis."(INGENIEROS, 1960, P.54 e 59)

A elaboração deste trabalho monográfico decorre da aceitação de um desafio. A catequese que diversos credos religiosos desenvolvem junto a crianças e adolescentes, com o beneplácito das famílias, é um dos vetores dessa preocupação, haja vista a insuficiência de juízo crítico, naqueles estágios da vida, para examinar a consistência de tais ensinamentos. É bem verdade que ao início do Curso de Pedagogia, na UFF, não me seria possível prognosticar com segurança o objeto a ser desenvolvido como trabalho de conclusão de curso, a monografia, mas asseguro que sempre me esteve presente a necessidade de os setores e pessoas envolvidos com as questões educativas investigarem mais atentamente como repercutem nos indivíduos os ensinamentos que foram assimilados na infância e na adolescência, mas, por força de sua expressão persuasiva, não foram submetidos a uma reavaliação na vida adulta. Por isso, repito, tornou-se para mim um desafio, desafio que resulta de uma permanente inquietação e da certeza de que faço parte de uma geração que não alcançará os frutos do almejado e elevado grau de conscientização do ser humano, muitíssimo superior ao atual, não obstante acredite que ele algum dia será atingido.

Justamente por pensar assim, por considerar a matéria das mais incitantes, entendi também que minha inquietação adquiriu forma e se sistematizou ao longo do Curso, indicando-me exercê-la em algo provocativo e oportuno, qual seja o trabalho monográfico. É bem verdade que conheço as limitações da repercussão de uma monografia, mas também admito que pior seria a omissão. Encorajam-me nesta empreitada pessoas que exibem substantivo grau de criticidade, principalmente minha professora-orientadora - Gelta Terezinha Ramos Xavier -, e compreendem como válida minha preocupação. O ponto de partida para essa aflição, no terreno da educação, se encontra no grande paradoxo do ensino/aprendizagem que pretende constituir sujeitos, sem que os executores dessa proposta, em sua maioria, tenham sido subjetivamente constituídos. Neste particular, refiro-me à formação religiosa da maioria esmagadora de nossos profissionais da educação, porquanto assumem seus credos sem consultar sua consistência epistemológica, isto é, sem examiná-los com o rigor exigido para que o conhecimento seja aprovado. Recebem-nos da cultura, da tradição, da família, da ascendência clerical e validam, no caso cristão, a Bíblia como documento sagrado, indiscutível. Ignoram que a assunção de conhecimento sem a aprovação de seus atributos intelectuais gera aceitação incondicional dos preceitos ditados pelos credos, num imperceptível processo de alienação e atrofia intelectual. Será possível, em capítulo específico deste trabalho, contemplar a posição de estudiosos da subjetividade humana acerca dessas afirmações.

Na área da educação formal, já não há mais dúvida quanto à necessidade de uma participação ativa do educando na construção do conhecimento, o que revoga os métodos tradicionais, nos quais o aluno recebe passiva e objetivamente os conhecimentos que lhe são transmitidos pelo professor. Conforme aludi no parágrafo anterior, é necessário que o profissional de educação esteja consciente dessa orientação e, para tanto, procure avaliar se as condições de seu exercício pedagógico se encontram em sintonia com essa proposição. Parece-me que a deficiência no ajuste entre teoria e prática educativas estaria, dentre outras causas, no conflito vivenciado pelo educador, relativamente ao contraste entre sua formação e a proposta de educação que lhe está sendo confiada. Não basta que a ele estejam sendo confiadas a transformação e a emancipação, é necessário que ele esteja emancipado.

Entendo que a problematização acima seja uma preocupação daqueles que formulam os caminhos da educação e buscam maior sintonia de seus profissionais com as teorias pedagógicas de vanguarda. Vale, então, registrar a consistência dessa preocupação na proposta curricular do Curso de Pedagogia da UFF, constante do Catálogo Geral da UFF – Graduação – Pedagogia, disponível na Internet:

Formar profissionais da Educação dotados de visão crítica da realidade que os cerca (...). O licenciado em Pedagogia, é, antes de tudo, um profissional da Educação. É importante assinalar, portanto, que todas estas funções devem ser exercidas de maneira integrada com a realidade concreta da sociedade, para construção do ser humano individual/coletivo numa perspectiva de educação transformadora.” 

Conforme exposto, procurarei abordar, inicialmente, qual a diferença entre a proposta de nosso Curso e “a realidade concreta da sociedade”, que abriga também os profissionais de educação. Aqui, fica evidente que o educador nasce, cresce e vive no mesmo ambiente sociocultural das crianças com as quais compartilha momentos de ensino/aprendizagem. Em seguida, procurarei estabelecer um ajuste entre a análise crítica que alguns estudiosos realizaram sobre a constituição dos grupos sociais e os valores morais que lhes são impostos pela realidade cultural. Nesse particular, será enfatizada a influência que o proselitismo religioso exerce sobre os grupos sociais e a sociedade como um todo. Como uma experiência pessoal, baseada numa crítica espontaneamente desenvolvida ao longo dos anos, permitiu-me conduzir a análise dos ensinamentos cristãos recebidos na infância e na adolescência, os quais, por muito tempo, adquiriram estatuto de verdade, como conseqüência do peso coercitivo exercido pela tradição e pela ascendência daqueles que estão a seu serviço. Penso que essa experiência crítica deveria fazer parte do processo educativo, isto é, todos os indivíduos deveriam examinar sua realidade subjetivamente, distanciando-se propositadamente do objeto, qual seja a realidade adquirida do ambiente cultural. Trata-se de validar ou rever, mas como sujeitos do conhecimento que entendam a concepção de mundo e demais conceitos inerentes à vida como suscetíveis de uma análise individual. Esta apreciação estaria, certamente, afinada com o grau de criticidade aludido na proposta de formação do profissional da educação da UFF, conforme citação acima.

Relativamente ao campo de observação que serviu de suporte para as respectivas hipóteses, é necessário afirmar que significativa parcela da investigação foi obtida por meio de consulta/questionário realizada junto a alunos do Curso de Pedagogia da UFF. Devo acrescentar que certos embates sobre o tema religioso, em sala de aula, igualmente permitiram detectar tendências, preferências e necessidades religiosas do alunado, fazendo-nos concluir que a maioria esmagadora mantém os ensinamentos recebidos no período infância/adolescência, sem, contudo, havê-los analisado de modo mais aprofundado. Mais ainda, em alguns contatos informais com educandos de Pedagogia que vivenciam, em diversas igrejas, a prática da catequese ou evangelização, é possível observar invariavelmente barreiras quase intransponíveis ao exame do que lhes é contraditório, porquanto os catequistas possuem um compromisso muito forte com o próprio discurso, isto é, mesmo que indícios de contradição ou inconsistência sejam detectados no proselitismo, torna-se difícil analisar criticamente o que por eles mesmos foi transmitido como verdade absoluta. Tem-se, então, o enredo em que oradores se deixam escravizar pela própria oratória e, conquanto possa parecer desprezível essa observação, ele pode ser identificado em diversos matizes ideológicos, mas tem força incomum nos indivíduos que ministram ensino religioso. Essa observação está contida numa citação de David Hume (HUME: 1999 p.116-117), no momento em que o pensador escocês analisa a tendência do ser humano para a interpretação mágica da vida. Nessa abordagem, Hume descreve como os indivíduos abdicam da dúvida, da crítica ou de qualquer questionamento e se submetem à eloqüência e, por conseqüência, à sedução do discurso religioso. Está implícito nesta apreciação o desprezo pelo pensamento alternativo, ou seja, desde que se encontrem cooptados por determinado credo, os indivíduos não ousam utilizar o conjunto de informações oposto à doutrina religiosa, que se configura como contraditório. A estratégia de convencimento dos credos religiosos cria barreiras intransponíveis ao coletivo de fiéis, formado por homens-rebanho.

Por uma questão metodológica, entendo necessário iniciar este trabalho por aquilo que denominei experiência pessoal, procurando demonstrar a trajetória percorrida entre a doutrinação religiosa, na infância/adolescência, e o rigoroso exame de caráter subjetivo a que espontaneamente me submeti, mais tarde, para tratar de matéria da maior importância para minha vida. Creio haver passado por uma experiência amarga, porque assentei os pilares da minha existência sob padrões preexistentes à minha chegada ao mundo, aos quais, durante muitos anos, eu atribuí valor de verdade. Justamente por isso, por ter contado durante a vida com condições e oportunidades favoráveis à travessia da fronteira, sinto-me à vontade para explicitar os caminhos percorridos e sugerir que outras pessoas investiguem, cada qual a seu modo, se as suas concepções de mundo, quaisquer que sejam, resultam de uma apreciação crítica ou são originárias de seu ambiente cultural. Posteriormente, procurarei apresentar abordagens de teóricos de significativa presença nessa área do pensamento, confrontando-as com as práticas religiosas adotadas em nossa sociedade. Obviamente, nesse confronto, observarei como os diagnósticos daqueles teóricos têm estreita ressonância com os procedimentos apontados nos questionários que foram objeto da investigação.

A experiência pessoal


Minha experiência não difere da vivida pelos outros mortais. Não sendo exatamente igual, é assemelhada. É pacífico, como princípio, que todos nós vivemos sob o mesmo teto cultural e assimilamos, desde a infância, hábitos, costumes e toda sorte de ensinamentos, sem dar conta de que a engrenagem social está cooptando-nos silenciosamente e roubando-nos o direito de examinar, em estágio mais amadurecido da vida, toda a complexidade que cada um de nós experimenta como ser vivo, como ser pensante, como portador de um valioso instrumento chamado intelecto. É assim mesmo. Não damos conta que observamos incondicionalmente regras e deveres, para que não estejamos sujeitos às sanções previstas em códigos não muito bem elucidados. Nosso aprendizado é o da reprodução e da obediência.

Sem maiores delongas para todos os aspectos inerentes à organização da sociedade, aos quais os indivíduos quase que invariavelmente se submetem, procurarei ater-me especificamente ao ligado à crença religiosa, consoante propus ao início deste trabalho. Tal enfoque se prende fundamentalmente ao juízo que faço da vida espiritual conduzida pelos credos religiosos e à catequese cooptativa exercida pela igreja dominante na cultura brasileira, a católica romana. Todavia, sempre que necessário, buscarei em outras vertentes, religiosas e afins, a elucidação e suporte para os pontos de vista que defendo.

Meu ingresso na vida religiosa aconteceu na condição de fiel, como membro leigo, a exemplo de tantos outros. Também como tantos outros, meus primeiros passos nessa direção surgiram da família, instituição que adquiriu a responsabilidade inalienável de conduzir os filhos para os caminhos da chamada imprescindível educação religiosa. Em certos círculos, diga-se de passagem, é voz comum dizer que "toda pessoa precisa de uma religião". Entre oito e dez anos de idade, inicia-se a construção de um conhecimento para o resto da vida. A presença do sobrenatural é incutida em nossa consciência como valor indiscutível e superior. Nessa faixa etária, não há suporte cognitivo bastante para contestar o ensinamento recebido; inexistem, também, condições favoráveis à abstração e pensamento lógico. Conseqüentemente, o conhecimento religioso inicial é constituído de um repertório de ensinamentos que tem o poder de impor à criança o valor sobrenatural da vida, ao tempo que lhe mostra os instrumentos utilizados na fé, como oração, participação em ritos religiosos, obediência às recomendações clericais etc. Conforme dito anteriormente, tais informações são conduzidas de forma coercitiva, visto que as condições socioculturais (sociedade, família, escola) facilitam a coerção, além de contarem com ingredientes sedutores, tais como vida eterna e recebimento de graças e bênçãos.

À medida que tais ensinamentos vão acumulando-se, seus efeitos adquirem as proporções desejadas pelo proselitismo religioso. A observância rigorosa aos mandamentos da lei de Deus e da igreja, o aprendizado dos deveres condizentes à boa conduta do fiel, a memorização das orações, tudo isso se incorpora àqueles que são compelidos a exercer um compromisso para o qual não estão preparados, posto que não possuem ainda suporte cognitivo suficiente para examinar o conteúdo dos ensinamentos. Nessa seqüência de acontecimentos, eu iniciava uma longa jornada, sem que me apercebesse que ali se introduzia a abdicação do pensamento, que estava admitindo que minha vida fosse balizada por um poder que me era estranho, porquanto não tinha como validar a sua pertinência, mas obedecer sem reservas. Mais ainda, partícipe de um processo de alienação, não me era possível detectar o grau de cooptação e seus reflexos no processo de reprodução; significa dizer que não atentava que mais tarde sentir-me-ia na obrigação de conduzir meus filhos pelo mesmo caminho, isto é, eu os incluiria numa ordem do pensamento sem lhes pedir consentimento.

Mas eu não caminho só, faço parte de um todo e com todos compartilho a trajetória. Uma vez cooptados, não fazemos oposição. Por isso, o tempo se encarrega de nos tornar cada vez mais submissos àquelas determinações, até porque já acreditamos na vida espiritual resultante do processo de catequese. Sem qualquer discussão, admitimos e introjetamos conceitos que se consubstanciam na revelação divina, acreditamos sem questionar no poder da oração, invocamos a proteção de um ser intermediário entre nós e Deus, chamado santo, e concordamos com a existência de fenômenos sobrenaturais, conhecidos como milagres. O ponto culminante da passividade é a assunção do sentimento de culpa, que se torna mais substantivo pelo atributo de pecado. A inculcação da culpa é o momento crucial, psicológico, para a cooptação, pois os credos religiosos, conscientes da fragilidade humana, utilizam-na como principal ferramenta para a permanência do fiel em suas hostes. Quanto mais consegue a catequese confundir o pretenso erro com o pecado, mais o homem se sente culpado e cuida de sua remissão; para se redimir, submete-se à orientação da autoridade eclesiástica e consolida sua condição de submisso, de homem-rebanho. Pior de tudo é que a culpa se incorpora à maneira de ser do indivíduo, passa a fazer parte de sua identidade, mesmo em assuntos extra-religiosos. Agregar o sentimento de culpa a seu conjunto de valores faz do cooptado um ser contido, homem-rebanho, um ser neutralizado, sem iniciativa, sem descoberta; ele se assemelha à figura do homem medíocre identificado por José Ingenieros na introdução deste trabalho. Para melhor compreensão, reiteramos que tudo se processa de forma objetiva, ou seja, sem a presença do sujeito do conhecimento, obviamente. São condicionamentos exercidos diuturnamente sobre o indivíduo, que deles não se apercebe, posto que eles fazem parte de práticas já consolidadas e aceitas em seu grupo social. Significa dizer que, numa sociedade determinada, os grupos sociais têm como instrumento regulador de suas relações um credo religioso. Integrar-se a ele define a adesão do indivíduo ao grupo social e sua submissão a parâmetros culturais previamente definidos. A religião, então, com o peso da instrumentalização sobrenatural de que é portadora, exerce sobre os indivíduos o papel de balizadora de conduta; funciona como uma força uniformizadora do comportamento, sem que as relações de poder (subjacentes, por sinal) sejam identificadas pelos membros que compõem o grupo social.

O processo de cooptação não se extingue com a adesão do fiel a toda sorte de obrigações e à aceitação incondicional da doutrina. Há os caminhos que celebram seu ingresso na comunidade de fiéis, que o incorporam ao coletivo chamado rebanho de Deus; é necessário, porém, mantê-lo. Por isso, os passos do cooptado são acompanhados, e os sacramentos garantem sua presença no rebanho, aumentando seu compromisso com a fé. O batismo do recém-nascido, as cerimônias de crisma (sacramento de confirmação), primeira comunhão e casamento fazem parte do roteiro para que o fiel esteja em permanente contato com a sua igreja. A confissão dos pecados é também um compromisso de consciência, pois ela é reaproximação com Deus e condicionante para que o fiel receba o sacramento da comunhão. Embora a confissão não seja prática de outras vertentes do cristianismo, nem por isso elas deixam de aplicar recursos doutrinários assemelhados, que pretendem, em última análise, manter o controle sobre os adeptos, induzindo-os a acreditar que vivem em pecado e, por isso, precisam redimir-se.

Cumprimos todos essa trajetória e incorporamo-nos à vida religiosa. Não nos furtamos aos convites para participar dos movimentos promotores da fé que funcionam nas paróquias, como, por exemplo, o Encontro de Casais com Cristo (ECC) e o Encontro de Adolescentes com Cristo (EAC), que buscam reforçar a evangelização dos participantes e, numa etapa seguinte, prepará-los para os trabalhos assistenciais e maior aproximação com as comunidades onde os princípios cristãos não se encontram suficientemente consolidados.

Eis que, na contramão das expectativas daqueles que controlam o rebanho, algumas pessoas, em número muito reduzido, acompanham o desenvolvimento de todas as ações com espírito crítico, procedem como se ali estivessem para praticar o receituário, mas também examinar sua validade, a sua importância, a sua consistência como ensinamento que servirá de fio condutor para a vida, será balizador da conduta humana. Tais pessoas, com as quais me identifico, são capazes de detectar contradições em algumas afirmações do proselitismo religioso. Mais ainda, constatado o desencontro, sentem-se instadas a levar a investigação adiante, sem a preocupação de que a fé estará abalada e os caminhos da salvação poderão ser interrompidos. É aí que o ser humano se torna o que é, insubordinando-se em relação ao improvável; transfigura-se, atravessando a fronteira que separa o homem-rebanho do homem-sujeito. Mesmo que o primeiro momento não lhe proporcione clareza, este mesmo momento possui um valor inestimável, pois ele representa a ruptura com a passividade e a submissão. Hoje, sei que o questionamento deve ser permanente, assim como admito que há muitas perguntas sem respostas. Não importa que não se alcance a verdade, mas é importante saber que não há mais imposição de conhecimentos com estatuto de verdade. À medida que incorporamos a dúvida coerente ao nosso cotidiano, substituímos o pesado fardo da submissão incondicional pela satisfação de especular a realidade com autonomia, augurando, ademais, que melhor seria que essa rebeldia aumentasse progressivamente o seu número de adeptos. E não seria demais desejar que esse contingente tenha como missão a educação emancipadora e como corolário desta a emancipação dos educadores.

Quando me refiro à dúvida coerente, exijo de mim uma reflexão permanente para as questões que me foram coercitivamente colocadas. O ponto culminante desse emaranhado de preceitos reside na aceitação incondicional da revelação divina. Ela é apresentada como real, indiscutível e sem retoques. Como se trata de ensinamento que conta com a intermediação de instituições religiosas, chamadas igrejas, permiti-me insurgir contra essas afirmativas, refletindo do seguinte modo: se Deus é onipotente, onisciente e onipresente, se Deus considera todas as criaturas igualmente, por que ele se revelaria a apenas alguns e faria com que os demais observassem passivamente os preceitos ditados pela minoria instalada no poder eclesiástico? É o mesmo que perguntar: se os atributos da onipresença, da onipotência e da onisciência são suficientes para que Deus conviva harmonicamente com suas criaturas, por que transferir essa incumbência a uma instituição chamada igreja? Parece-me um inconfundível contra-senso. Da mesma forma, como pode um ser, dito perfeito, criar seres imperfeitos e exigir que estes lhe dirijam orações e irrestrita obediência, como reconhecimento à sua superioridade divina? Obviamente, algumas explicações sobre as concessões divinas são justificadas pelas igrejas, mas estão muito longe da consistência lógica. Mas, nesse embate, a fé é consagrada em sua transcendência, onde os limites da razão são ultrapassados, ou seja, os pregadores da fé admitem ter acesso à mencionada transcendência, assim como se apresentam com representantes de Deus aqui na terra. Nesse particular, os fiéis se regozijam, pois as explicações sobre a ingerência do sobrenatural em suas vidas adquirem magnitude, pois revelam uma nova dimensão da existência e desvendam os mistérios da vida. Não se pode, todavia, aceitar pacificamente essa interpretação, pois a compreensão de toda a complexidade metafísica que se propõe passa inevitavelmente por um canal do entendimento humano chamado razão, e esta nada mais é que uma expressão de seu aparelho psíquico. Com esse propósito e rara felicidade, Sigmund Freud recorre à sintonia existente entre o psiquismo humano e o desenvolvimento transformador da ciência, para esclarecer de que forma pode e deve ser interpretada a realidade, a saber:

Em primeiro lugar, nossa organização – isto é, nosso aparelho psíquico – desenvolveu-se precisamente no esforço de explorar o mundo externo, e, portanto, teria de ter concebido em sua estrutura um certo grau de utilitarismo; em segundo lugar, ela própria é parte do mundo que nos dispusemos a investigar e admite prontamente tal investigação; em terceiro, a tarefa da ciência ficará plenamente abrangida se a limitarmos a demonstrar como o mundo nos deve aparecer em conseqüência do caráter específico de nossa organização; em quarto, as descobertas supremas da ciência, precisamente por causa do modo pelo qual foram alcançadas, são determinadas não apenas por nossa organização, mas pelas coisas que influenciaram essa organização; finalmente, o problema da natureza do mundo sem levar em conta nosso aparelho psíquico perceptivo não passa de uma abstração vazia, despida de interesse prático.
Não, nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar que, aquilo que a ciência não nos pode dar, podemos conseguir em outro lugar. (FREUD, 2001, p.87)

A explicação freudiana deriva, obviamente, de sua pesquisa em torno do psiquismo e das possibilidades do desenvolvimento do intelecto. As assertivas da citação acima estão contextualizadas no seu propósito de negar às religiões o privilégio de explicar o mundo, como também servem para manifestar sua esperança de que a primazia do intelecto será alcançada, “num futuro infinitamente distante”. Enquanto distantes da situação real deste maravilhoso prenúncio, nada mais resta que examinar como se formam as relações sociais e como o conhecimento se processa, qual seu percurso nas interações do indivíduo com a sociedade.

O conhecimento socialmente produzido


Seria de se perguntar como acontece, como se produz o conhecimento dentro dos grupos sociais e, ao mesmo tempo, como reage cada indivíduo ao conjunto de informações que lhe é sugerido ou imposto pelo seu ambiente sociocultural. Afinal, cada um de nós está presente em uma circunscrição onde pessoas compartilham hábitos, costumes, utilizam-se da mesma língua e trocam experiências. Trata-se de práticas sociais previamente codificadas, preexistentes ao ingresso do indivíduo em determinado grupo social, mas que ele assimila sem dar conta do poder coercitivo de que elas são portadoras.

Creio ser válido retomar um dos objetivos curriculares de nossa graduação em Pedagogia. É pacífico que a proposta de um educador engajado na construção do ser humano individual/coletivo, numa perspectiva de educação transformadora, envolve percepção e domínio do que seja individual e do que seja coletivo. Não obstante essa preocupação esteja voltada para a crítica do educador como sujeito do conhecimento e da prática educativa, procurarei analisar o binômio individual/coletivo num contexto mais abrangente, até porque entendo que o presente enfoque se aplica também às demais esferas da atividade humana.

Admitamos que o indivíduo seja consciente de sua unicidade como pessoa e de sua inserção no ambiente social. Ele deve reconhecer-se com pleno direito ao exercício de sua individualidade, assim como identificar no outro igual prerrogativa inerente à subjetividade. O sujeito pleno exibe autonomia intelectiva, não permite que seus valores sejam modificados sem suficiente exame crítico. Nessa ordem, ele se sente à vontade para indagar sobre sua origem, investigar sobre a realidade que o cerca, pesquisar sobre o que o aguarda, discutir sobre vida ou morte, sem observar passiva e obsequiosamente fórmulas tradicionalmente consagradas; ele se permite, outrossim, contestar as afirmações existentes que não sejam evidentes por si mesmas, mas que adquiriram estatuto de verdade pelo uso e pela repetição. Suas avaliações têm sempre o crivo da reflexão.

Pressupondo que o aspecto relativo à individualidade esteja preliminarmente identificado, a investigação se volta para o coletivo. Este é o terreno onde os indivíduos se reúnem, se reconhecem e somam esforços; aqui se estabelecem relações éticas, morais, de solidariedade, de desavença, de desunião, de guerra, de apoio, de mútua sustentação; é igualmente o espaço onde são cultivados os hábitos e costumes de uma sociedade, onde nascem, frutificam e se transformam suas crenças e valores. É imprescindível que o indivíduo se reconheça integrante do grupo social e se identifique com os demais membros desse coletivo, onde direitos e deveres são os responsáveis pelo equilíbrio e harmonia entre todos.

É necessário ter presente que o exame dessa matéria leva em conta o ser humano tal qual ele é, relativamente a sua vulnerabilidade, seu inacabamento, sua fragilidade, sua suscetibilidade aos procedimentos de origem emocional. Tal instabilidade decorre de sua inconclusão como ente-espécie e explica sua fragilidade. Ênfase especial é dada à capacidade de o ser humano deixar-se submeter sempre que lhe acenam com alguma coisa que venha a beneficiá-lo, mesmo que estejam fora de seu alcance a consistência e a legitimidade dos pretensos benefícios. Não podemos esquecer, entretanto, que o ser humano tem a seu favor a trajetória da vida, os permanentes avanços e transformações que o transportam a um novo estágio de conhecimento. Se, outrora, acreditávamos em deuses mitológicos, bruxaria e peste como punição divina; se há aproximadamente trezentos anos a contestação à palavra da Igreja representaria julgamento inquisitorial e morte, temos que considerar que vivemos como sujeitos históricos momentos de superação em relação àqueles. Nada impede o ser humano de examinar profundamente sua identidade ontológica ou de buscar um viés crítico para sintonizar-se com a realidade. É necessária, ainda, a compreensão de que todos os seres humanos possuem a característica inata de ser igual e potencialmente inteligentes, conforme estudos e pesquisas no âmbito da sociobiologia, conquanto há que se reconhecer que os influxos culturais são responsáveis pelas inibições intelectuais dos homens e, em conseqüência, pela sua incapacidade de superar a força coercitiva dos conhecimentos oriundos de seus grupos sociais.

Nesse momento, é lícito que o indivíduo investigue a quantas anda sua subjetividade, ou seja, que ele apure até que ponto seus conhecimentos, procedimentos e preferências derivam de sua escolha ou foram adquiridos do ambiente cultural. Obviamente, essa investigação de caráter puramente pessoal não se processa num passe de mágica, mas exige que cada um seja capaz de examinar criticamente suas contradições e as coloque na arena mais apropriada para a solução dos conflitos: a reflexão. Esta nada mais é que o campo da isenção, da imparcialidade, do rigor e da exaustão do pensamento. Se os procedimentos não atenderem a esses quesitos, infrutíferos serão os esforços de quem se propõe sujeito de si.

É necessária a compreensão dos caminhos percorridos, desde a infância, para a construção do conhecimento ora ostentado. Recebe-se toda ordem de ensinamentos e todos os dias acrescenta-se algo ao aprendizado. Nesse sentido, cumprindo o rigor e isenção acima sugeridos, convém distinguir o que é inquestionável, ou seja, aquilo que é evidente por si mesmo, e o que carece de demonstração. No primeiro caso, pode-se citar como simples exemplo a exatidão dos cálculos matemáticos, assimilada nas escolas. Ela é universal, é aceita em todos os quadrantes do planeta e ninguém questiona sua validade. No segundo, lembramos os conceitos de ordem política e caráter religioso, os quais recebem diferentes interpretações em diversos países e regiões do mundo. Por isso, nossa análise se prende a esse segundo aspecto, posto que ele foge da unanimidade, é reconhecidamente polêmico e quase sempre contraditório, muito embora tais conceitos tenham predominância em determinados países ou regiões, isto é, sua variabilidade ocorre de acordo com o espaço geográfico. De propósito, o desenvolvimento deste trabalho procura destacar, criticando, os caminhos que levam multidões a abraçar as diversas religiões, os quais se processam sempre, consoante nosso entendimento, pela cooptação via catequese religiosa. Cabe, então, antes de iniciar tal abordagem, analisar os pressupostos que conduzem à organização da vida social, o que facilita a compreensão do aspecto religioso como injunção da mesma vida social.

Em uma sociedade complexa, como a nossa, todos os indivíduos, desde o nascimento, nela se integram e convivem de acordo com regras e códigos, alguns escritos e outros não. Este conjunto de deveres, contudo, não ocorre por livre escolha do ser social, mas por imposição de uma força exterior à sua vontade. No seu dia-a-dia, o indivíduo assimila princípios, deveres, hábitos e costumes, mas tais atributos ocorrem de modo coercitivo, independem de prévio exame ou de qualquer avaliação crítica. A propósito, o fragmento abaixo, de Marilena Chauí, filósofa e escritora, autora de Convite à Filosofia, resume com clareza como nossas atitudes se processam por meio de condicionantes que fogem à nossa percepção:

"Nossos sentimentos, nossas condutas, nossas ações e comportamentos são modelados pelas condições em que vivemos (família, classe e grupo social, escola, religião, trabalho, circunstâncias políticas, etc). Somos formados pelos costumes de nossa sociedade, que nos educa para respeitarmos e reproduzirmos os valores propostos por ela como bons e, portanto, como obrigações e deveres. Dessa maneira, valores e deveres parecem existir por si e em si mesmos, parecem ser naturais e intemporais, fatos ou dados com os quais nos relacionamos desde nosso nascimento: somos recompensados quando os seguimos, punidos quando os transgredimos". (Chauí: 1999, p . 340).

A partir desta síntese, alguns, não todos, se sentem instigados a avaliar até que ponto seu desempenho como ser humano, como indivíduo, deriva de uma apropriação subjetiva ou resulta da assimilação de modelos previamente montados por uma força exterior à sua vontade. É possível, por exemplo, examinar por que praticamos os rigores da etiqueta quando comparecemos a um jantar de confraternização; quando procuramos seguir os lançamentos da moda; quando obedecemos aos ritos prescritos por determinado credo religioso. Conquanto tais procedimentos se operem em esferas distintas da atividade humana, eles se prestam como instrumentos de avaliação de nossa condição de sujeito do conhecimento, isto é, permitem-nos verificar se tais práticas foram por nós previamente criticadas, averiguadas, ou exercitadas por um automatismo incontrolável. Se previamente criticadas, saberemos apurar qual a capacidade para distinguir entre o que se torna necessário para que nossa atuação no campo das relações humanas seja de integração, de harmonia, ou de pura obediência àquilo que se encontra catalogado pela tradição.

Além de Marilena Chauí, outros estudiosos do comportamento humano já haviam realizado trabalhos da mesma natureza e pretendiam, da mesma forma, demonstrar que as escolhas, na maioria dos casos, não ocorrem pela subjetividade individual, mas pela intervenção coercitiva da sociedade. Emile Durkheim, sociólogo e pensador na transição dos séculos XIX e XX, possui trabalho de abordagem de organização da sociedade, chamado "O que é fato social?". Pela importância que ele representa para a presente dissertação, permito-me inserir fragmento desse estudo e, ao mesmo tempo, estabelecer analogia entre a sua análise e a de Chauí. Afirma Durkheim:

"Quando desempenho meus deveres de irmão, de esposo ou de cidadão, quando me desincumbo de encargos que contraí, pratico deveres que estão definidos fora de mim e de meus atos, no direito e nos costumes. Mesmo estando de acordo com sentimentos que me são próprios, sentindo-lhes interiormente a realidade, esta não deixa de ser objetiva: pois não fui eu quem os criou, mas recebi-os através da educação. Contudo, quantas vezes ignoramos o detalhe das obrigações que nos incumbe desempenhar, e precisamos, para sabê-lo, consultar o Código e seus intérpretes autorizados! Assim também o devoto, ao nascer, encontra prontas as crenças e as práticas da vida religiosa; existindo antes dele, é porque existem fora dele(...). Esses tipos de conduta ou de pensamento não são apenas exteriores ao indivíduo, são também dotados de um poder imperativo e coercitivo, em virtude do qual se lhe impõem, quer queira, quer não. Não há dúvida de que esta coerção não se faz sentir, ou é muito pouco sentida, quando com ela me conformo de bom grado, pois então torna-se inútil". (RODRIGUES, J.A. 1995, p. 46-47)

Tais considerações possuem excelente conteúdo crítico para todos aqueles que pretendem avaliar a origem de suas atitudes e de suas escolhas; permitem, também, numa etapa seguinte, identificar quais os conhecimentos adquiridos precisam ser reavaliados, posto que alguns apresentariam sinais de inexatidão ou inconsistência lógica. Uma vez constatadas, subjetivamente, distorções ou fragilidade em determinada área do conhecimento, torna-se necessário investigar criteriosamente suas discrepâncias, evitando, assim, que elas sejam responsáveis por futuros desajustes e conflitos de caráter pessoal. A grande preocupação, nesse sentido, é incentivar a reflexão daqueles que foram algum dia doutrinados por determinado credo religioso; trata-se de sugerir exame consciente do fragmento acima transcrito, no tópico que Durkheim afirma que "o devoto, ao nascer, encontra prontas as crenças e as práticas da vida religiosa". Em seguida, cumpre apurar como tais crenças e práticas repercutem na vida das pessoas, principalmente daquelas que contribuem para a construção do conhecimento, daquelas que acreditam na educação transformadora.

Ao longo deste trabalho monográfico, estará permanentemente implícita a indagação acerca dos critérios de organização da sociedade, ou seja, se os princípios de harmonia, coesão, fraternidade, solidariedade e promoção humana precisam sempre ser administrados de cima para baixo ou surtiriam melhor resultado se todos os indivíduos fossem arregimentados num monumental projeto de participação igualitária e influíssem decisivamente num igualmente monumental projeto de redenção humana. Significa perguntar se o ser humano precisa ser sempre tutelado, dirigido, por instituições como Estado, igreja e organismos internacionais, ou pode organizar-se em uma grande subjetividade coletiva e conduzir seus destinos através dos tempos. Por extensão, indagar-se-á se o indivíduo, quando tutelado ou dirigido por injunções alheias à sua vontade, não estaria sendo molestado ou agredido em seu inato e intrínseco anseio de liberdade e de autonomia. Pessoalmente, considero-me ultrajado, traído pela vida, quando constato que durante muito tempo cultivei princípios que não eram meus e me foram impostos. Conforme experiência narrada quase ao início deste trabalho monográfico, tive que aceitar o que estava pronto, consagrado pela tradição e faltavam em mim condições para avaliar se devia ou não aceitar o que me era apresentado como verdade sagrada. Mesmo as pessoas que me dedicavam amor e se responsabilizavam pela minha educação, também elas, algum dia, foram arrebatadas de sua ingenuidade e envolvidas por esse imenso rolo compressor da civilização, estando, por conseguinte, sem condições de evitar nelas também as conseqüências desse ato invasor da privacidade do pensamento. Pior de tudo é que nunca lhes foi facultada a oportunidade de atentar sobre a validade daquele conjunto de informações.

A propósito, cabe registrar o que foi desenvolvido pela psicanálise no exame dessa matéria. Sigmund Freud, médico austríaco e fundador da psicanálise, resolveu dedicar-se, a partir de 1920 e até 1939, ano de sua morte, aos problemas da civilização, observados dentro de uma perspectiva psicanalítica. Nesse período, ele escreveu um célebre ensaio, intitulado “O Futuro de uma Ilusão”, no qual descreve como se desenvolvem as relações entre as religiões, ênfase especial ao cristianismo, e aqueles que se tornam fiéis e adeptos de diversos credos. No tocante à invasão da privacidade do pensamento, mencionada no parágrafo anterior, Freud faz, nessa obra, um feliz e oportuníssimo diagnóstico, ao revelar como se operam as estratégias de cooptação e preservação dos indivíduos dentro das correntes religiosas, conforme fragmento abaixo:

Pense no deprimente contraste entre a inteligência radiante de uma criança sadia e os débeis poderes intelectuais do adulto médio. Não podemos estar inteiramente certos de que é exatamente a educação religiosa que tem grande parte da culpa por essa relativa atrofia? Penso que seria necessário muito tempo para que uma criança, que não fosse influenciada, começasse a se preocupar com Deus e com as coisas do outro mundo. Talvez seus pensamentos sobre esses assuntos tomassem então os mesmos caminhos que os de seus antepassados. Mas não esperamos por um desenvolvimento desse tipo; introduzimo-la às doutrinas da religião numa idade em que nem está interessada nelas nem é capaz de apreender sua significação. Não é verdade que os dois principais pontos do programa de educação infantil atualmente consistem no retardamento do desenvolvimento sexual e na influência religiosa prematura? Dessa maneira, à época em que o intelecto da criança desperta, as doutrinas da religião já se tornaram inexpugnáveis (o grifo é do autor). (FREUD, 2001, p. 74-75)

Freud faz observação das mais lúcidas, conquanto ela não esteja visível para aqueles que se encontram fortemente contagiados pela doutrinação cristã, quando, no fragmento acima, faz referência à atrofia intelectual provocada pela educação religiosa. Mas como conseguimos diagnosticar, de acordo com os postulados freudianos, uma “inteligência radiante de uma criança sadia?” Creio não haver dificuldades para observadores atentos no campo das ciências humanas, principalmente os que atuam na área da educação infantil, quando se propõe identificar o potencial cognitivo de uma criança. O espírito de observação sempre aguçado, a curiosidade constante, a capacidade criadora espontânea e a vocação ilimitada para as perguntas são atributos incontestáveis do mundo infantil. Freud faz, então, a ponte dessa potencialidade infantil para a debilidade intelectual do adulto e revela que a educação religiosa é a responsável por essa depreciação, por essa atrofia. É necessário compreender como se processa tal metamorfose.

Nós vivemos em sociedade, e os indivíduos participam de grupos sociais, nos quais são diversas as formas de organização. No momento que se organizam, os grupos sociais criam a sua cultura, constituindo-a de hábitos, costumes e crenças. Tais práticas se confundem com o processo civilizatório, entendendo-se que este é o caminho da convivência harmônica, uniforme, dos indivíduos que formam um grupo social e se sentem compelidos a um sistema de convivência pacífico com seus semelhantes. Diga-se de passagem, nessa apreciação, cultura e civilização não se diferenciam e caminham juntas. Delas, entretanto, emergem como força atuante, amparadas pela tradição, as religiões, instituições que avocam a prerrogativa de educar as massas, conduzindo o processo educativo pela via do ensinamento religioso e seus derivados, isto é, as obrigações e os deveres a serem cumpridos. Parece-me que o exame da aludida metamorfose acontece, na criança, justamente quando ela, colhida de surpresa, se vê diante de um emaranhado de conceitos pelos quais jamais se interessara, mas não vê como dele se desvencilhar. E o pior para a criança é que o arcabouço de obrigações que lhe é imposto cria nela uma série de condicionamentos e rouba-lhe a espontaneidade e a naturalidade que até então ela experimentava. A atrofia a que se refere Freud inicia sua dimensão quando a criança, sem questionar, assimila padrões normativos e conceituais avessos à sua vocação para a liberdade e a autonomia. Por mais paradoxal que possa parecer, as pessoas que se encarregam de acompanhar todo o processo de perda de qualidade intelectiva da criança são, involuntariamente, os próprios pais, uma vez que as religiões concentram nas famílias a responsabilidade pela reprodução das idéias religiosas, até porque os membros mais velhos das próprias famílias um dia foram cooptados pelo mesmo processo de reprodução.

Obviamente, quando se propugna pela liberdade e pela autonomia, não se trata de defender a anomia dos grupos sociais e muito menos desaprovar a civilização como instrumento de conformação da sociedade. O que causa espanto, principalmente quando se indica um horizonte de uma educação emancipadora, é admitir determinada formação religiosa como inquestionável e obrigatória, via de mão única, como se estivesse consagrada sua universalidade. É necessário ter clareza, e isso faz parte das propostas pedagógicas atuais, que a criança deve participar das etapas de construção do conhecimento. Nessa ordem, seu desenvolvimento acontece numa perspectiva de interação com o ambiente onde ocorre a aprendizagem, seja na família, na escola e nas demais relações. Caso a criança não tenha atingido, ainda, o estágio que lhe faculte o exame de determinado conhecimento, o bom senso pedagógico recomenda que se adie sua abordagem para o momento oportuno.

A necessidade de preservar a criança de conhecimento incompatível às suas expectativas não é recente. Uma das grandes figuras do Renascimento, o escritor francês Michel Eyquem de MONTAIGNE(1533-1592 já se havia manifestado a respeito. Todo seu pensamento encontra-se em uma única obra, intitulada Ensaios. Nela, há um capítulo dedicado especialmente à formação infantil, denominado Da Educação da Criança, do qual torna-se obrigatório, para ilustração deste trabalho monográfico, destacar o fragmento abaixo:

“Tudo se submeterá ao exame da criança e nada se lhe enfiará na cabeça por simples autoridade e crédito. Que nenhum princípio, de Aristóteles, dos estóicos ou dos epicuristas, seja seu princípio. Apresentem-se-lhe todos em sua diversidade e que ele escolha se puder. E se não o puder fique na dúvida, pois só os loucos têm certeza absoluta em sua opinião (...). Quem segue outrem não segue coisa nenhuma; nem nada encontra, mesmo porque não procura.” (MONTAIGNE: 1987, 4ª ed. P. 77-78).

A interpretação que faço do texto acima permite-me acrescentar uma sugestão. Desde que o ser humano cumpra os estágios de seu desenvolvimento psíquico, desde que ele apreenda conhecimentos suficientes para o exercício do discernimento, isto é, sendo adulto, não haverá obstáculos para que os princípios lhe sejam apresentados, pela primeira vez, todos em sua diversidade e que ele escolha se puder. No tocante à área específica do pensamento religioso, que a ele se submetam os conceitos do catolicismo, do protestantismo, do judaísmo, do kardecismo, do islamismo, do ateísmo e os das vertentes politeístas. Segundo o critério acima estipulado, o indivíduo estaria valendo-se de sua prerrogativa de sujeito do conhecimento, conforme explicitado cristalinamente por Montaigne, e escolheria de modo autônomo, soberano. Eis a questão, o sujeito examinaria a realidade com critérios puramente seus, sem influência de seu ambiente cultural, sem a obrigação de crer nos preceitos de familiares que, por sua vez, jamais tiveram condições psicológicas para examinar de modo autônomo os valores que foram impostos como verdadeiros e sublimes. Ao tempo que sugiro esta reflexão, tenho também em conta a dificuldade que as pessoas cooptadas na infância/adolescência, por qualquer credo, encontram para examinar a validade de suas opções religiosas, pois, como muito bem assinala Freud, elas já se tornaram inexpugnáveis.

É possível identificar nos autores até então citados uma convergência em suas apreciações. Chauí analisa o comportamento humano que recebe influências do meio; sua preocupação é a participação da razão e do conhecimento nas atitudes humanas, em relação ao coletivo. Durkheim procura mostrar, sob o ponto de vista sociológico, a operacionalidade do fato social, revelando que um conjunto de normas e crenças anteriores e exteriores ao indivíduo atua sobre ele e promove de modo coercitivo sua integração a um grupo social. Freud analisa, na citação que lhe coube, como a criança recebe orientação religiosa e faz dela, na idade adulta, um recurso existencial. Montaigne faz uma incursão pelo domínio pedagógico-filosófico e mostra a impropriedade de submeter a criança a um conhecimento cuja compreensão esteja fora de seu alcance, fazendo-nos lembrar o saudoso mestre Paulo Freire. Ademais, parece-me válido compreender a sua observação - “nada se lhe enfiará na cabeça por autoridade ou crédito” - não somente em relação aos autores por ele mencionados, fazendo-a extensiva aos pais que exercem sobre seus filhos autoridade e crédito e, por esta via, obrigam-nos ao ensino religioso.

Com efeito, seria de se perguntar o que leva as pessoas a não inquirir a respeito de matéria que lhe foi apresentada como inquestionável. Se nos reportarmos a Renné Descartes, verificaremos que a dúvida é o melhor método para se alcançar o conhecimento, pois a sua inclusão como instrumento de investigação coloca-nos obrigatoriamente ao encontro da reflexão (Chauí: 1999 p. 93). Pois esta mesma reflexão poderia estabelecer as seguintes dúvidas: qual o fenômeno social explica que os integrantes de uma sociedade sejam adeptos do mesmo credo religioso? A resposta é muito simples, pois a mensagem religiosa é, antes de tudo, um ingrediente cultural e, como tal, é assimilada como parte constitutiva e obrigatória dos costumes de uma sociedade específica. Assim, no Brasil, a tradição cultural faz com que os indivíduos que compõem a sociedade brasileira sejam, em maioria esmagadora, adeptos do cristianismo, pois desde os tempos da colonização a ação das igrejas cristãs criou raízes em nosso território. Na mesma direção, no território israelense, a cultura milenar de mensagens proféticas fez de Israel a pátria do judaísmo, assim como, na maioria dos povos árabes, as profecias reveladas por Maomé ganharam corpo, através dos tempos, e estabeleceram as bases do islamismo. Não fica, então, evidente que a especificidade da fé é uma questão territorial ou geográfica, conforme citação anterior deste trabalho? Não podemos esquecer que as mensagens religiosas, qualquer seja o credo, são crivadas pela sedução, marcadas por atrativos de forte apelo psicológico, que atuam na sensibilidade ingênua e despreparada da maioria das pessoas. Elas explicam a origem da vida, a própria vida e a morte; para tanto, valem-se de linguagem abstrata e transformam-na em conhecimento concreto do senso comum. Neste particular, as igrejas cristãs utilizam como núcleo da doutrina o discurso no qual Jesus anuncia as bem-aventuranças, conhecido como Sermão da Montanha. Na Bíblia, os evangelistas Mateus e Lucas explicitam que as condições indispensáveis à fé são a ignorância, a pobreza de espírito e a renúncia aos bens materiais. Ora, é justamente desses atributos que os credos religiosos sobrevivem, fazendo os fiéis ingênuos imaginarem que "deles será o reino dos céus". Contrariamente ao apregoado no Sermão da Montanha e de modo diferente das práticas do cristianismo primitivo, a cúpula de qualquer igreja é formada de doutores em filosofia e teologia, alguns dos quais detentores de patrimônio e farta conta bancária. O raciocínio contido neste parágrafo pretende mostrar ao leitor atencioso que os indivíduos nascem, crescem e vivem em determinado ambiente cultural e por ele são cooptados, embora admitam, como boa dose de ingenuidade, que suas escolhas são pessoais, refletidas e subjetivas. As doutrinas religiosas, obviamente, fazem parte da cultura e estão incluídas na presente apreciação.

A catequese e demais instrumentos de divulgação do ensino religioso cristão tratam o seu principal documento, a Bíblia, como sagrado. Dentro de nossa cultura, são raras as pessoas que tenham assimilado, na infância, o adjetivo ora referido e realizado um exame a respeito. Perguntar-se-ia: por que sagrado? Quem lhe atribuiu essa respeitosa classificação? Que postulados asseguram ao livro o caráter sagrado? Se houver uma resposta afirmando que o atributo sagrado se justifica porque o livro traz consigo a revelação divina, poder-se-ia indagar qual a área do conhecimento, senão a religiosa, que nos permite inferir que houve realmente intervenção de Deus na elaboração de todos aqueles escritos. Esta é uma questão a ser examinada logo a seguir.

Conhecimento: possibilidade e credibilidade


No cotidiano, todas as vezes que nos deparamos com uma situação nova, em que o conhecimento a respeito ainda não se encontra sistematizado, ele precisa ser testado à luz da viabilidade, isto é, para que ele seja crível, necessário se torna, antes de tudo, que ele seja possível. Na escola, o aluno constrói seu conhecimento matemático após proceder ao exame de sua factibilidade, de sua probabilidade; as quatro operações, as equações e os teoremas, por exemplo, precisam ser demonstrados, para que sejam aceitos como conhecimento indiscutível, para que tenham credibilidade. Em outras áreas, como a das ciências humanas, há outra forma de investigação, mas que também conduz à credibilidade, pois ela se fundamenta na pesquisa e no aprofundamento de dados quantitativa ou qualitativamente sensíveis ao ser humano. Portanto, o conhecimento é comprovado ou desaprovado pelos meios ao alcance do homem, que se vale de instrumentos sensoriais e de um processador, o intelecto, para cumprir as etapas da investigação.

Essa interpretação sobre o caminho que conduz o ser humano ao conhecimento refere-se à razão. É através dela que se formam os conceitos, se identificam as categorias, se define, enfim, o conhecimento; por extensão, torna-se possível aos humanos perceber o real e até mesmo examinar a possibilidade do irreal, isto é, nada que se presta ao conhecimento definitivo, abalizado, virtualmente comprovado, pode ser alcançado sem o raciocínio, que é o uso da razão ou encadeamento de juízos que leva a uma demonstração racional. Portanto, nós, seres humanos, possuímos um filtro para a realidade vivida, e a realidade de cada um só pode ser validada após percorrer e ultrapassar todos os obstáculos e quesitos estabelecidos pela razão. O percurso ora referido pretende que o conhecimento definitivo sobre algo que se deseja conhecer seja sempre através das faculdades cognitivas do sujeito.

Creio não haver novidade no parágrafo precedente, mas como a preocupação, no caso, é retomar a questão do ensinamento religioso imposto( e posteriormente administrado) à criança, convém aferir qual a capacidade ela possui para, racionalmente, aceitar aquele inesperado, pronto e dogmático conhecimento. Nos primeiros anos de sua evangelização, ela aprende, involuntariamente, que o cristianismo assegura a existência do milagre, da força e do poder da oração, da vida eterna, todos eles estreitamente ligados à revelação divina.. Tratando inicialmente do milagre, sabe-se, por definição, que ele marca um acontecimento sobrenatural, inexplicável pela razão e decorrente de uma ação divina. Dos milagres atribuídos a Jesus Cristo, o da ressuscitação de Lázaro, constante do Evangelho de São João, é indiscutivelmente o mais emblemático. Certamente, as condições criadas para a transmissão desses conhecimentos são amplamente favoráveis à aceitação, pela criança, da veracidade e da inquestionabilidade do ensinamento, porquanto ela ocorre num clima coercitivo, onde despontam a autoridade e o crédito aludidos por Montaigne(1987, p.77-78). Apenas isso. A criança não possui ainda discernimento suficiente para entender por que e como ocorre um milagre, desconhece por que se lhe atribuem origem sobrenatural, mas nele acredita irremediavelmente, transforma-o em princípio. Não seria então, em função dessa incapacidade, mais prudente seguir a recomendação do célebre pensador, qual seja, “apresentem-se-lhe todos em sua diversidade e que ele escolha se puder. E se não o puder fique na dúvida...?”

A apreciação acima exposta procura situar o milagre como um dos instrumentos de cooptação da criança ao credo religioso. Pelos motivos já analisados, ela aceitará como verdadeira a informação, que doravante fará parte de seu acervo místico. Nesse momento, acredito ser necessário chamar a atenção do adulto crédulo, principalmente aquele que se deseja crítico, rigoroso investigador da realidade, capaz de examinar agora o que não foi possível durante a infância ou adolescência, períodos em que as marcas do proselitismo religioso, incluindo milagres, têm mais eficácia. Trata-se de analisar as observações ditadas por David Hume(1711-1776), célebre pensador escocês, as quais, em capítulo específico da obra Investigação Acerca do Entendimento Humano(1999, p.109-128), descrevem os óbices à realização dos milagres. Segundo ele, o milagre é uma violação das leis da natureza. Nessa apreciação, lei da natureza é o fato que se consagra pela sua experiência uniforme, ou seja, ele sempre ocorre nas mesmas circunstâncias e não admite exceções. Pode-se afirmar, sem medo de errar, que um tijolo cairá, caso seja colocado, sem que algo o segure ou ampare, a uma altura de um, dois ou três metros. Nesse caso, identifica-se a força da gravidade, fenômeno natural uniforme e sem contestação. Se, por acaso, alguém passar por um lugar e vir um bloco de cimento flutuando no ar, certamente não irá muito longe em seu propósito de comprovar a veracidade do evento. Tratar-se-ia, no caso, de ilusão de ótica ou de alucinação. Por isso mesmo, à luz do rigor e do compromisso com a concretude, compreende-se por que Hume afirma que as narrativas sobre a existência de milagres partem de quem está enganado ou, então, quer enganar-nos(1999, p.115). É fácil entender o pensamento daquele que está enganado, mas não ousa investigar: simplesmente porque crer para ele transformou-se em necessidade. Fácil também é perceber que, nas mesmas circunstâncias, o adepto do espiritismo acredita que a mediunidade é um acontecimento sobrenatural, ou seja, ele tem necessidade de compreender a ação do médium como a incorporação do espírito de um ser já falecido. Jamais ele submeterá sua crença na mediunidade ao exame de sua possibilidade, pois isso colocaria em risco a sua credibilidade, o que representaria, nessa ordem, não ter chão onde pisar. Há, por exemplo, estudos que afirmam o transe mediúnico como atitude inconsciente, marcada pela conjunção de auto-hipnose e auto-sugestão. Essa combinação ocorre em ambiente adequado ao transe, na presença de outras pessoas, condição necessária para que haja suficiente excitação do psiquismo do médium e, conseqüentemente, a pretensa incorporação do espírito de uma pessoa falecida. Por que, então, o adepto do espiritismo não examina este indicativo contraditório e o confronta com as premissas mediúnicas, para então, com rigor e isenção, estabelecer um juízo ? Explica-se: as crenças no sobrenatural, com seu caráter balsâmico, trazem em si o poder de validar o inválido e provar o improvável, bem como desestimulam a investigação que comprove o contrário.

Como entender, então, o relato miraculoso, principalmente aquele das escrituras ditas sagradas? Como o compreenderá o homem de agora, que busca identificar-se com o real? Será ele capaz de guardar distância do objeto que o fez acreditar, outrora, na veracidade do milagre bíblico, na narrativa da ressurreição de um morto ou da recuperação da visão de uma cego? Qual é seu critério? Será de apuração da realidade, investigando a legitimidade das informações recebidas ou de conformação passiva, haja vista tratar-se de relatos de um documento irretocável, como a Bíblia Sagrada? Como proceder na atualidade, sabendo-se que ainda se respira o ar da sabedoria mágica, que o homem ainda se sente fortemente inclinado a aceitar, mesmo sem procurar entendê-las, as explicações sobre os acontecimentos sobrenaturais? Considerando que o filósofo escocês David Hume, empirista e precursor da psicologia, tenha vivido no século XVIII e examinado profundamente essas indagações, cabe transcrever parte do diagnóstico que ele faz da interpretação do senso comum à ocorrência de milagres, naquela época, e compará-lo com o nosso tempo:

Com que avidez se recebem os relatos miraculosos dos viajantes, suas descrições de monstros marinhos e terrestres, suas narrações de aventuras maravilhosas, de homens e costumes estranhos? Entretanto, se o espírito religioso se liga ao amor do maravilhoso, acaba-se todo o bom senso, e o testemunho humano, nestas circunstâncias, perde todas as suas pretensões de autoridade. O beato pode ser um entusiasta e imagina que vê coisas que são irreais; pode estar ciente de que sua narrativa é falsa e assim mesmo persiste nela com as melhores intenções do mundo, a fim de promover uma causa tão sagrada. Ou mesmo, se esta ilusão não ocorre, a vaidade excitada por uma tentação tão forte nele atua mais poderosamente do que nos outros homens em outras circunstâncias; ademais, o interesse pessoal age com igual força. Seus ouvintes podem não ter, e geralmente não têm, argumentos suficientes para debater seu testemunho; renunciam por princípio a todo senso crítico em relação aos assuntos misteriosos e sublimes; ou, se tivessem grande desejo em empregá-lo, a paixão e uma imaginação ardentes perturbariam a regularidade de suas operações. Sua credulidade aumenta sua imprudência e sua imprudência subjuga sua credulidade.
A eloqüência, no seu mais alto grau, sobrepuja a razão e a reflexão; mas como ela se dirige inteiramente à fantasia ou aos afetos, cativa os ouvintes condescendentes e subjuga seu entendimento.” (HUME: 1999, p.116-117).

Através dos tempos, é possível desmistificar cada vez mais os fenômenos aos quais se confere o atributo de milagre. Basta que o conhecimento humano ganhe amplitude e o que se compreende inicialmente como maravilhoso se transforme em acontecimento perfeitamente explicável e natural. Não obstante, o milagre tem sido um ingrediente imprescindível no arcabouço metafísico que é destinado a fazer a cabeça dos fiéis; ele possui um valor estratégico muito precioso na divulgação da doutrina cristã, pois funciona como um dos instrumentos da revelação divina. Para que a verdade religiosa tenha repercussão inexorável junto ao rebanho carente de explicações racionais sobre a existência, é necessário que ela seja desvelada de modo impactante, superior e irrefutável, e isso só pode ocorrer pela via do sobrenatural. Significa que a carência referida decorre da insuficiência humana, de seu inacabamento e de sua incapacidade em desvelar sua origem, sua existência e a finalidade da vida. O modo impactante, então, pelo viés sobrenatural, soluciona os questionamentos daqueles que não ousam investigar. A aceitação das assertivas religiosas acontece, por conseqüência, por necessidade dos cooptados e não por vontade. A vontade implicaria exame rigoroso de todos os ensinamentos, aí incluído o que revela a possibilidade dos milagres. Da mesma forma, as religiões convencem seus fiéis sobre o poder da oração. Acreditando mais uma vez em um poderoso instrumento de acesso ao poder divino, também por necessidade, a massa de fiéis cria uma maneira peculiar para justificar a oração e, por necessidade, elabora interpretações fantasiosas sobre fatos que ocorrem no percurso entre a prece e o seu resultado, o pretenso atendimento. Há em nossa consciência um campo muito favorável para a construção artificial do resultado: a imaginação. Esta, por ser livre, faculta-nos admitir inverdades, fantasias e similares como situações concretas, e estas, no presente contexto, adquirem mais robustez quando são assimiladas pelo imaginário popular, o senso comum. Cristaliza-se, por conseguinte, nas massas, um modo de conceber a realidade e o mundo, sem que a elas seja concedido qualquer estímulo de investigação aos atributos pretensamente divinos.

Cabe, todavia, perscrutar o curso histórico dessas ações e dimensionar a posição das igrejas cristãs, principalmente a da que se traduz na hegemonia católica. O cristianismo foi durante muito tempo marcado por sua ligação com os poderes constituídos, o que lhe permitiu constituir-se também como poder. A partir do século IV d.C., a Igreja criou vínculos tão estreitos com os monarcas, que em pouco tempo lhe era permitido compartilhar as decisões. Essa aproximação acabou por criar as condições necessárias para que a vida das pessoas fosse governada, durante muito tempo, por uma forma de poder inspirada no teocentrismo. A força do poder religioso era fundamentada no sobrenatural bem primitivo, mas criou raízes profundas nos povos através dos tempos, em decorrência das ligações da Igreja com os governantes. E as massas passaram a ter tão-somente o papel de rebanho, seguindo o caminho indicado pelos pastores, sem atentar que sua crença estava fortemente contagiada por estímulos supersticiosos. Muitas iniciativas de cunho científico foram travadas, por encerrarem conteúdos contrários à doutrina. Muitas pessoas tinham o curso da vida interrompido sob a acusação de heresia e contrariedade aos princípios cristãos. Ora, se as massas não tinham acesso ao conteúdo doutrinário do cristianismo e desconheciam, por isso, sua formulação teológico-filosófica, nada mais lhes restava senão exercer a superstição em todas as suas manifestações. Ao longo dos anos, porém, há igualmente a marcha do processo histórico e de modo lento, mas real, ocorrem mudanças. Eis como Hume as interpreta:

“...Quando examinamos as primeiras histórias de todas as nações, sentimo-nos inclinados a imaginar-nos transportados a um novo mundo, onde toda a trama da natureza está desarticulada e todos os elementos efetuam suas operações de uma maneira diferente que fazem na atualidade. As batalhas, as revoluções, a peste, a fome e a morte não são nunca efeitos de causas naturais que experimentamos. Prodígios, presságios, oráculos e punições divinas ocultam completamente os poucos eventos naturais que se misturam a eles. Mas, como seu número diminui a cada página, à medida que nos aproximamos das épocas das luzes, rapidamente compreendemos que não há nada misterioso ou de sobrenatural no assunto, mas que tudo decorre da tendência natural dos homens para o maravilhoso, e que, embora esta inclinação às vezes possa ser refreada pelo bom senso e pela instrução, não pode ser jamais extirpada da natureza humana.” (HUME: 1999, p.118)

O fragmento faz uma oportuna referência à peste, vinculando-a ao sobrenatural. Com efeito, qualquer doença que adquira atualmente a dimensão de endemia ou epidemia já não mais recebe a interpretação mística da Idade Média. Quando é localizado qualquer foco de enfermidade, as autoridades adotam medidas saneadoras e profiláticas, a fim de debelar o mais rápido possível as suas causas, sem que lhes seja atribuída a significação de punição divina, conforme ocorrido em 1348, quando quase metade da população européia foi dizimada pela peste bubônica. Todavia, conquanto se constate esse crescimento na consciência das sociedades, encontra-se muito arraigada entre nós a prática do curandeirismo e da solução religiosa para a cura de doenças cujo diagnóstico acuse, entre outras causas, influência demoníaca nos corpos dos enfermos. E não é preciso ir muito longe para identificar pessoas que vivenciam esses princípios: em setores onde são apregoados valores de emancipação e autonomia, como a educação, é possível encontrar quem atribua às forças do mal a origem de problemas afetivos, financeiros e de saúde; para solucioná-los, a receita está em uma igreja. Em outro espaço deste trabalho, será examinado, por amostragem, o resultado da pesquisa realizada entre estudantes de pedagogia, relativamente a suas posições diante da experiência religiosa.

Faz parte do presente conjunto de investigação o exame do poder da oração, tal qual é aceito pelos fiéis dos diversos credos. Ele é dos instrumentos mais valiosos quando se trata de resolver aflições e demandas, quer de ordem material ou de necessidade espiritual. Como se trata de recurso do qual não se conhece a antigüidade, quase chegamos a afirmar que ele nasceu com o ser humano. Todos as crenças dele se valem, em conta seu valor mágico e sua capacidade de tornar possível o impossível, pois é assim que os adeptos de todos os credos o concebem. Em alguns credos ditos evangélicos, pentecostais e ramificações do protestantismo, é muito comum a expressão “vou orar”, quando se impõe a necessidade de resolver algo que está pendente; nestes casos, a freqüência maior se verifica nos casos que requerem solução imediata, de ordem material. Mas o mundo católico não fica atrás e ainda conta com um reforço todo especial no encaminhamento das preces, a figura do santo. Este se notabilizou por suas virtudes, por seu ascetismo e, enfim, por sua dedicação à causa divina, o que lhe permitiu a ascensão “post-mortem” na escala hierárquica da igreja em questão. Os devotos depositam nos santos a esperança da solução para suas iminentes necessidades. É muito comum ouvir testemunhos de pessoas que se dizem curadas de sérias enfermidades pelo poder da oração, qualquer que seja o credo. Quando se trata de um fiel do catolicismo fortemente contagiado pelo senso comum, ele atribui quase sempre a cura a seu santo de devoção. Mesmo que a assistência médica tenha sido permanente no acompanhamento do caso, e é o que sempre ocorre, ele sempre atribuirá a obtenção da graça à oração e a seu intermediário junto à autoridade divina, o santo.

Com efeito, quem se aventurará a trocar algo que está consagrado como real e faz parte de um sentimento coletivo, onde todos se sentem irmanados, amalgamados e protegidos? Por que, de repente, o fiel se envolveria numa questão altamente polêmica, sabendo, de antemão, que a antítese de seu pensamento não lhe oferece nenhuma graça na vida terrena e muito menos lhe garante a vida eterna? Provavelmente, por não saber que a vida cética é examinada por seus adeptos, não decorre de nenhum instrumento cultural coercitivo e passa por todos os rigores exigidos por uma reflexão. Ela não tem, de fato, o poder de ungir os seres humanos a outra dimensão da vida, mas lhes faculta, sem dúvida, um exercício vital plenamente consciente, um exercício que valoriza a vida enquanto vida. Conforme já explicitado anteriormente, o que se propõe é a validação da escolha pelo sujeito. Os exemplos acima pretendem mostrar que a grande massa de fiéis ou crentes nada escolheu e sim absorveu um ensinamento, na infância, sem que lhe fosse permitido avaliar minimamente a evidência de seu conteúdo. A sua prática diuturna, aliada a uma mensagem atraente e sedutora, conduz cada membro do rebanho, a partir do limiar de sua consciência, a admitir o pensamento religioso como insubstituível, tornando-o inexpugnável, de acordo com a citação freudiana contida neste trabalho.

Friedrick Wilhelm Nietzsche (1844-1900), um dos mais consagrados filósofos que a humanidade já conheceu, atentou para as soluções que o humano exibe quando se lhe apresenta uma dificuldade do tipo acima citado. Ele revela que há uma natural tendência para o mágico, para o artificial, desde que suas expectativas nele encontrem guarida. Num célebre ensaio denominado Sobre a Verdade e a Mentira no Sentido Extra-Moral, o pensador faz uma denúncia sobre os procedimentos humanos em sua relação com o desconhecido encantador, demonstrando que nossa fragilidade é responsável, na maioria dos casos, por escolhas que não possuem um mínimo de respaldo lógico. Vale transcrever o trecho da obra que faz referência a esses procedimentos:

É também em um sentido restrito semelhante que o homem quer somente a verdade: deseja as conseqüências da verdade que são agradáveis e conservam a vida; diante do conhecimento puro sem conseqüências, ele é indiferente; diante das verdades talvez perniciosas e destrutivas, ele tem disposição até mesmo hostil. (NIETZSCHE, 1983: p. 46-47)

Obviamente, Nietzsche critica a verdade que é apresentada pelos defensores da religião, os quais, segundo o pensador, estabelecem como verdadeiro todo o conhecimento que justifica a existência de vida ultraterrena. Nessa acepção, ele procura demonstrar que o ser humano está mais inclinado a seguir a moral de escravo, de fraco, que reagir afirmativamente, no sentido da vontade de potência que lhe é imanente. A crítica do filósofo remete-nos ao período clássico da filosofia grega, quando o pensamento socrático-platônico cria as bases para o que, mais tarde, seria o fundamento do cristianismo e de seu grande instrumento de controle das massas, a moral judaico-cristã.

A exemplo do procedimento adotado em tópico anterior deste trabalho, quando procurei demonstrar a sintonia dos pensamentos de Dürkheim e Chauí, autores que se manifestaram sobre o mesmo tema com diferença de aproximadamente 100 anos, considero oportuno estabelecer nova analogia entre outros dois filósofos: o supracitado Nietzsche e David Hume. É possível observar, com o excerto abaixo, que, quase 200 anos antes, o escocês divulgava semelhante diagnóstico, não obstante vivesse em tempos de excessivo controle do pensamento pela Igreja. Analisemos então:

"A maioria dos homens têm tendência natural para manifestar suas opiniões de modo afirmativo e dogmático e, como visualizam os objetos sob um único aspecto e como não têm qualquer idéia de argumentos opostos, lançam-se precipitadamente aos princípios para os quais estavam inclinados e não são indulgentes com aqueles que abrigam opiniões contrárias. A dúvida ou a suspeita gera perplexidade em seu entendimento, bloqueia sua paixão e interrompe sua ação. Portanto, impacientes para escapulir de uma situação que lhes é tão desagradável, os homens supõem que unicamente aderindo às afirmações violentas e crenças obstinadas conseguirão afastar-se o bastante dela. Mas, se tais homens que raciocinam dogmaticamente pudessem ter consciência da singular fragilidade do entendimento humano, inclusive em seu estado mais perfeito e quando é mais rigoroso e prudente em suas resoluções, semelhante reflexão os inspiraria naturalmente a ter mais modéstia e reserva, diminuindo a exagerada opinião que têm de si mesmos e seus preconceitos contra os adversários". (HUME, 1999: p.151,152)

Nessa perspectiva, cumpre avaliar como reage o ser humano diante desse rolo compressor que é a cultura dominante de seu grupo social, tendo como principal articulador o pensamento religioso. Tais reações, procurarei descrevê-las em consonância com as respostas que foram solicitadas a alguns alunos de pedagogia e, naturalmente, devo considerá-las como possível confirmação da hipótese. A consulta se realizara por meio de questionário, e as perguntas estariam fundamentadas nas conjecturas que deram origem a este trabalho. É bem verdade que outras considerações serão levadas a efeito, a fim de complementar um raciocínio que está demonstrado não apenas por respostas de um questionário, mas também por observações feitas em outras instâncias, tais como discussões dentro e fora da sala de aula, diálogos do cotidiano e demonstrações espontâneas de afinidade com a mensagem religiosa.